segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Part-ida

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#1

Ela era bem pequena, devia ter algumas poucas voltas em torno do sol. Devia ter visto algumas primaveras, apenas. Mas já tinha de personalidade um bocado. Até sua mãe dizia "Você sempre foi muito é atrevida...", com um tom bem risonho.

Eis que seu pai, com um caloroso amor, profundo sentimento pela criança, pela vontade de dar-lhe o melhor. O melhor de tudo. Desde o mais abstrato, até o concreto mais valioso. Sempre fez o que podia, e o que não podia, até mesmo suportar suas malcriações.

Eis que ele, com o mais perfeito sentimento do universo, encontrou uma boneca. Uma boneca que tinha cabeça de porcelana. E percebeu que aquela boneca deveria estar exatamente nas mãos de sua querida pequena. Tão logo ele a tomou, e a levou para casa, em palpitantes pulsações de emoção.

Sentindo que fazia o melhor, deu-a à sua menina, sentindo-se o super-herói, o melhor pai do mundo. Mas... Uma tragédia cômica acometeu aquele lar tão harmonioso. Ao chegar da rua, como dizem os mais antigos, encontra o pai sua filhinha amada divertindo-se enfurecidamente com seu novo presente: o que era de porcelana, tornou-se lembrança. Como toda criança, ela, ao adorar o brinquedo, levou-lhe ao chão com toda a convicção que se poderia ter, sentindo-se a mais poderosa também do universo, tal como sentira seu orgulhoso pai.

Eis que existia uma boneca, que já não tinha mais cabeça, que já não mais existia por completo. Eis que seu amoroso pai compreendeu: era uma boneca de porcelana, e ela, um bebê que ainda iria crescer e entender que na vida existem brinquedos e brinquedos.

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#2

Bateu-lhe a porta de forma estranha. Disse que precisava de abrigo. E não se demorou nem o suficiente pra gravar-lhe a fronte. Apenas acertou tudo e foi-se, como quem pede uma informação no ponto de ônibus e de repente já está do outro lado da rua tomando outro ônibus.

Bateu-lhe novamente, desta vez com a mala e a cuia. Até acostumarem-se com a convivência e compreenderem-se mutuamente. Até que batem-lhe a porta, e ela também surge à procura de abrigo. Logo, tão logo, surge uma nova residência, um novo lar, uma nova família.

E está criado o laço. Agora já se enxergam, já se compartilham, já se sentem.


(...)

"Daniel e Luciana,

Em espanhol 'hogar' (lar) vem de 'hoguera' (fogueira) já que era em volta da fogueira que as pessoas pertencentes às antigas tribos se reuniam.

Aqui, em São Paulo, esse lugarzinho se tornou minha fogueira, meu lar, e vocês as pessoas que fazem parte da minha tribo (família!?) e que sou muito grato por tê-los.

Adiós, qualquer dia eu bato nessa porta de novo.

Michell, 05/10/10"

Após a retomada de fôlego, contrapartiram-se:

"Michell,


O brilho da fogueira nos chegou nesta madrugada, quando casualmente eu arrumava a mesa do centro. Suas palavras gentis haviam se escondido e essa ausência por esses séculos todos desde que você partiu, nos fez partilhar ligeiras más impressões a seu respeito. Sim, dizíamos (que ironia!) de sua insensibilidade exatamente por não nos deixar uma carta como a que ora lemos. Marcelo e Jordana também estavam na ocasião do achado do tesouro e isso foi tema por algum tempo. Sofremos, pois, agora do remorso comum a essas situações: a acusação a inocentes. A carta foi acolhida com muito encanto e prazer.

Esperamos que você esteja bem, muito bem, mas que não deixe de sentir uma pontinha de saudade dos que aqui, desta tribo distante, pensam em você.

Grandessíssimo abraço carinhoso,

Daniel/Luciana

P.S.: "How many roads must man walk down before you call him a man..." (Bob Dylan)".

 
(...)


"Daniel e Luciana,
Pois é, a mesa de centro escondia a carta!
Mesa de centro que sempre se fez silenciosa durante nossas partilhas
guardadas na madrugada.
Mesa de centro que está ao centro!
Mesa de centro de madeira!
Dura e muda.
Mesa de centro que se fez fogueira!

Tenham certeza que todos estão em lembranças que se fazem saudades
dentro de um cara insensivelmente sensível.

"Há braços" para todos!


A luz de uma fogueira,
Michell"

(...)


Um candieiro envolve esse lar, cheio de misticismo, de sonhos, de papos intelectuais, de sentimentos, e de todo o infinito. E assim entende-se que ser um ser humano, é ser humano.


 
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#3

Num dia de chuva
Com sentimentos aflorados
Elas três saem
Após pensarem o mundo
De dentro e de fora
Saem pelo mundo afora
E se encontram
As três
Em comum sentimento.

Neste momento
Afloram
Todos os sentimentos
Devassos e puros
E sentem
E,
Ao som do mundo
Ao gosto de sorvete
De pétalas de rosa
Brindam
À vida que está por vir
Ao que querem
E ao tão infinito
Quanto ele mesmo.

O próprio amor.


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#4

Em uma tribo distante
Há pessoas que acreditam
Que quando a gente morre
Vira espírito
E,
Após enfrentar grandiosos obstáculos
Em sua jornada
Mesmo em morte
Pois, ainda assim, o caminho distante
É intemperizado,
Lá,
Logo lá na frente
A gente encontra
Bem lá na frente
O arco-íris.

E,
Na certeza da paz
Em morte
E do descanso para todo ó além
A gente atravessa-o
Lá,
Onde a gente encontra
O arco-íris.

(...)

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